Tarde da noite

É sexta-feira e a cidade ferve.

As ruas estão cheias de pessoas que procuram um lugar para se divertir, depois de uma semana de trabalho. De pessoas que se apressam para não perder o ônibus que os levará a outro ônibus que os deixará em alguma rua mal iluminada e esburacada e longe ainda da segurança do lar. De pessoas que, sem lar sem emprego sem nada, vagueiam na esperança da caridade alheia, dos restos deixados nas latas de lixo ou nas mesas que adentram as calçadas.

É sexta-feira e a cidade ferve.

As ruas estão cheias do barulho infernal de buzinas e sirenes e pés que querem a todo custo acelerar a vida, e se misturam ao burburinho das vozes e risos e cantoria dos que estão sentados entre velhos e novos companheiros. Mas há também o cheiro de restos de comida e de bebida, de perfumes e suores, de óleo diesel e de desinfetantes, de doença e de remédio. E há também as luzes de faróis nervosos e de luminosos que informam a passagem do tempo e iluminam o rosto dos que lutam contra essa passagem do tempo. As janelas dos arranha-céus que compõem e mantêm as engrenagens dessa massa de gentes abrigam agora aqueles que vão limpar e preparar mesas empoeiradas e banheiros imundos e corredores e cozinhas para o próximo dia.

É sexta-feira e a cidade ferve.

Agora, olhe aquele prédio ali. Bem no meio da furdunço da cidade. É um prediozinho pequeno, antigo, descascado e cheio de pichações, que por milagre ainda persiste com seus moradores.

Veja que nele há uma ou outra luz em um ou outro apartamento. Vê aquela ali em uma janela do terceiro andar? Não, não é luz do teto, é uma luz que vem de cima de uma mesa. É a única luz desse andar. É uma luz solitária.

Como solitário é quem olha agora para essa luz. Ele usa calça e casaco de moletom cujo capuz esconde quase toda sua cabeça. Seu rosto está iluminado pela luz que vem de seu computador, e suas feições não deixam perceber nenhuma emoção, antes se diria que parece hipnotizado, tamanha sua concentração. Ele está sozinho, mas suas mãos frenéticas traçam desenhos imaginários no teclado e seus ouvidos captam sons de tiros e explosões de bombas, de vozes e passos apressados. Ele se sente vivo e poderoso, o tempo não existe, a cidade não existe.

A batalha continua por horas, até que ele se cansa, pousa as mãos no teclado. Boceja, suspira e fecha o aplicativo. Desliga o computador e o quarto imediatamente entra em uma penumbra, amainada pela luz de fora. Pega o celular, deixa-o na mesinha de cabeceira e se deita na cama. Sente a cabeça pesada, os olhos ardendo. Dorme rapidamente. Minutos depois, uma criatura fantasmagórica sai da tela do computador e se senta na beira da cama. Estende o braço descarnado sobre sua cabeça e afasta o capuz. Ele está de costas e assim continua. Sente o hálito quente que acompanha a voz suave sussurrando em seu ouvido: “Descansa, amanhã a batalha continua…”.

Acorda assustado, transpirando, o coração disparado. Olha automaticamente para o computador sobre a mesa, que nesse momento lhe parece altivo, como um soberano em seu altar. Vira de costas. É a quarta noite que tem o mesmo pesadelo e sabe que agora o sono vai teimar a chegar.

Lá fora, a cidade começa a se amornar. Porque já é sábado.

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