Cena 1

Um rapaz com camiseta branca, calça jeans, mochila, tênis, entra em uma livraria e fica andando entre as prateleiras.

Uma moça negra, de cabelos afro e óculos, vestida com um avental no qual se lê o logotipo da loja, dirige-se sorrindo ao rapaz.

— Oi! Posso ajudar?

— Ah… eu tô precisando de comprar um presente pra minha mãe, mas tô em dúvida.

— E você sabe de que tipo de leitura a sua mãe gosta?

— Bem, eu acho que ela gosta de livros mais antigos, essas histórias de amor meio melosas, sabe?

— Hum, entendi. Ela deve gostar de romances clássicos. Vamos ali, vou lhe mostrar vários.

O rapaz segue a moça até os fundos da loja.

— Olha, há vários romances maravilhosos. Deste lado, estão os brasileiros e portugueses. Alencar, Manuel de Macedo, Eça… E daquele lado, os estrangeiros…

A moça olha para o rapaz e percebe sua dificuldade em escolher.

— Posso te sugerir um especial?

O rapaz faz que sim com a cabeça e ela pega um exemplar.

O morro dos ventos uivantes. É um livro maravilhoso, uma história de amor linda.

— Ventos o quê?

A moça sorri e faz um gesto com os braços imitando o vento.

— Uivantes… UUUUUUUUUUUUUU… É um romance meio gótico, dá até um medinho.

O rapaz ri e resolve comprar o livro.

Cena 2

O rapaz está em casa, sentado ao lado da mãe.

— Espero que você goste, mãe.

— Meu bem, eu adorei! Li este livro quando era adolescente, mas quero ler de novo. Como você adivinhou que eu gostaria deste livro?

— Bom, na verdade foi a vendedora que me indicou. Ela me perguntou o que você gosta de ler e aí me mostrou esse.

— Esperta, essa moça.

— Ela disse que é meio gótico, fiquei até com vontade de ler também.

— Olha, eu tenho estado ocupadíssima estes dias preparando o jantar que eu e seu pai vamos oferecer ao novo cônsul americano. Vamos fazer assim: você lê primeiro e depois eu leio. Combinado?

— Combinado.

Cena 3

O rapaz está em pé do outro lado da rua em frente à livraria.

Ao ver a moça sair, sem o avental, com uma bolsa no ombro, ele atravessa a rua e vai ao seu encontro.

— Oi, você não deve se lembrar de mim…

— Claro que lembro. Sua mãe gostou do presente?

— Gostou, sim. Ela já tinha lido quando era jovem e disse que vai gostar muito de reler. E… é… eu também li.

A moça arqueou as sobrancelhas e sorriu.

— É mesmo? E o que achou?

— É legal, mas é tão… tão triste, né? Ninguém é feliz ali.

A moça fica séria.

— É, acho que não. Por que você acha que o amor deles não dá certo? O que impede os dois de ficarem juntos?

O rapaz e a moça vão andando lado a lado pela rua.

Cena 4

A mulher ajeita os cabelos em frente a um enorme espelho oval. O rapaz entra no quarto.

— Oi, mãe! Trouxe minha namorada pra você conhecer.

— Mas agora, filho? Estou cheia de coisas para providenciar.

— Tá, mãe, eu sei… o tal jantar… Mas foi você mesma quem insistiu para eu trazer.

— Sim, mas…

— Não precisa se preocupar, nós marcamos de ir ao cinema. Não vamos ficar aqui mais que cinco minutos, tá?

O rapaz dá um beijo no rosto da mãe e os dois descem as escadas.

A moça se levanta do sofá, meio sem jeito. A mulher abre os braços e cumprimenta a moça com beijos na face. A moça relaxa e sorri.

Cena 5

A mulher entra no quarto do filho. Em cima da cama há uma mala aberta onde o rapaz, apressado, coloca roupas e objetos pessoais.

— Meu filho, escute. Vamos conversar.

— Foi a última vez que você aprontou comigo.

— Mas foi para o seu bem.

— Pra ficar bem eu tenho que ficar é longe daqui.

O pai do rapaz entra no quarto. Fala alto e lentamente, dirigindo-se à mulher.

— Deixa ele em paz. Você passou dos limites.

— Não fiz nada demais.

— Fez. Inventou uma história de roubo e tirou o emprego da moça. Passou dos limites, sim.

— Mas ele é um menino.

— Não. É um homem e vai saber se virar.

Epílogo

Um ano depois.

Um pequeno apartamento, com poucos móveis. É noite.

O rapaz e a moça estão sentados em um sofá. O rapaz cochila e a moça, recostada em seu ombro, assiste à televisão.

A campainha toca. A moça se levanta com cuidado, segurando a barriga de cinco meses de gravidez.

A moça abre a porta.

A mulher e a moça se encaram. A mulher abaixa o olhar e fica por um tempo mirando o ventre da moça. Abre a boca, mas não consegue falar.

A moça sorri, abre os braços e acolhe a mulher, que a abraça, chorando.

Do décimo andar de um edifício, olho pela janela fechada de um apartamento onde estou sozinha. Do contraste entre a solidão da sala e a confusão das pessoas nas ruas vem uma sensação de distanciamento, de que nada do que vejo tem a ver comigo, de que estou numa instância paralela, muito longe daqueles bonequinhos de play mobil desgovernados, cujo mundo não tenho habilidade para habitar.

Olho fascinada a pressa de cada um e a incrível maneira de como, indo a direções diferentes, conseguem não se esbarrar, praticamente nem se encostar. Todos absolutamente decididos a ir a algum lugar que só eles sabem qual é.

Da minha janela, vejo-os quase iguais em tamanho, mas há uma diversidade imensa ditada pela cor das roupas, dos cabelos, dos tons da pele. Refletidos pelo sol, parecem bandeirinhas de uma festa junina sem música e sem dança.

Desencosto minha testa do vidro da janela e percebo, pela marca deixada, que meu rosto transpira, apesar do frio de inverno. Olho para a sala, os móveis, a xícara suja, os livros na estante, tudo tão familiar, tão meu, tão eu.

Pego a mochila, destranco a porta e saio. Vou para a frente do elevador e aperto o botão. E ao fazê-lo, vejo o tremor da mão e minha nuca se esquenta, como se alguém invisível a apertasse. Olho para o indicador dos andares e não sei se torço para que chegue logo e acabe com isso ou para que não chegue nunca. Mas o sinal de que chegou resolve por si a minha indecisão, e eu entro.

Lá dentro já está um homem de terno e gravata, que me olha sem me cumprimentar. Penso que meu boné, minha calça jeans e camiseta, meu casaco enorme e meus fones de ouvido fazem com que o homem, graças a Deus, me ignore. Alguns andares abaixo, porém, entra uma mulher e eu não me livro de um bom-dia ao qual dou uma resposta capenga. Não sei a reação da mulher, não olho para ela.

O elevador para e eu me precipito para fora. Olho à frente e a portaria do prédio parece muito longe, inalcançável. Vou andando devagar e ouço a voz de alguém, também longe, tão longe que não consigo entender as palavras ou reconhecer a voz. Viro o pescoço para ver quem fala e vejo o porteiro, que me olha meio espantado. Volto a olhar para frente e me custa fazer esse movimento, a cabeça pesa uma tonelada. Mas vou em frente e ultrapasso o portão.

Tento dar um passo para fora do portão, sem deixar de segurá-lo;
firmo as pernas, tentando um equilíbrio que não encontro, e arregalo os olhos. Os sons me chegam em bloco, não consigo discerni-los, e as imagens são distorcidas como num filme de terror. As pessoas têm corpos que se retorcem e seus rostos estão fora de foco, são fantasmas deslizando braços e pernas enormes diante de mim. Meu coração dispara, sinto que vou desfalecer e, apavorada, antes mesmo de dar um único passo na rua, entro novamente pelo portão e volto cambaleante até o elevador.

Enxugo com as mangas do casaco o suor que me atrapalha a visão e aperto o botão do elevador. Abro a mochila, tento achar as chaves, aperto o botão, deixo cair a mochila, aperto o botão, pego a mochila e aperto o botão. O elevador chega após uma eternidade e eu entro imediatamente, trombando em pessoas que dele estão saindo. Chego ao meu andar, abro a porta e no minuto seguinte sinto meu coração começar a se acalmar e meu corpo, a esfriar. Sentada numa poltrona, a mochila caída no chão, repito baixinho: não sou um play mobil, não sou um play mobil, não sou um play mobil

E aí, mano?

Pô, veio, tô muito preocupado contigo… Eu tinha pensado que era pena provisória, mas fiquei sabendo que vc caiu de vez. Olha, eu bem que te avisei, vc tava dando mole demais, cara.

Sabe, eu já tava meio cismado há muito tempo, com medo de que alguma coisa podia acontecer contigo. No começo era um pisante novo, óculos de marca, camisa de bacana. E aquela bike? Deve ter sido uma bolada…

Mas o que me fez ficar mais de cara foi quando vc disse aquele negócio de que tava com um esquema armado com uns carinhas aí. Lembra que eu te falei: Veio, isso vai dar ruim… esse povo aí não presta… Mas vc tava na adrenalina, cheio de planos, já pensando em carrão e tudo.

Aqui fora tá batendo uma saudade grande de você. Todo dia eu peço a Deus pra proteger vcs todos que tão aí no sofrimento. Tomara que a liberdade cante logo procê, cara, porque nós aqui tamos lembrando todo dia de você.

Mano, eu tô aqui, pode contar comigo pra o que der e vier. Eu ando meio quebrado, mas vou dar uma nota pra sua mãe comprar umas coisas pra você aí. Quando eu conseguir algum dindin, vou perguntar pra ela o que vc precisa. Aí, se estiver nas condições, vou tá te ajudando, mano, porque vc sempre foi parceiro demais comigo.

Cara, vê se manda umas cartas praqui também, pra nós poder tá desembolando mais. Toda vez que passo na rua da sua casa, olho pra janela do seu quarto e lembro quando eu te chamava pra gente conversar.

Cada dia que passa a saudade aumenta mais, irmão.

Um abraço.

Meu nome é Pollyanna, tenho 16 anos e acabo de sofrer um desastre.

Vamos começar do início.

Eu já não gostava desse nome mesmo antes de minha mãe explicar o porquê da sua escolha. Quando ouvi a tal história, aí sim fiquei com ódio. Como alguém pode gostar de uma personagem tão… tão… besta, meu Deus? E ainda por cima inventou um monte de eles, ípsilon e enes, porque acha bacana. Minha mãe era tão legal que acabei deixando pra lá, fingindo que gosto muito do meu nome, só pra não a deixar chateada.

Durante toda a minha infância, ela escolhia minhas roupas de acordo com o gosto meio doido dela, e o resultado em geral era hilário. As fotos são testemunhas: eram muitos laços, tiaras, babadinhos. No aniversário de dois anos, o tema da festa era a Barbie, mas eu parecia mais o Bozo, tamanha a quantidade de enfeites. No de quatro anos, eu deveria ser a Pequena Sereia e estava a cara da boneca Emília.

Foi por volta dos meus dez ou onze anos que comecei a questionar minha mãe sobre a adequação de certas roupas e acessórios que ela teimava em me impor:

— Top de oncinha, mãe? Melhor não…

— Esmalte com estrelinha? Bem…

— Sandália vermelha com meia-calça preta? Oi?!

E mesmo minha mãe sendo muito legal, eu dava um jeito de não aceitar todas as opiniões dela.

Foi há cerca de um ano que o desastre começou.

Quando cheguei da escola, minha mãe veio me mostrar um vídeo que ela havia visto na internet. Era o anúncio de um concurso que iria escolher a garota  Fashion Teen (confesso que, ao ouvir esse nome, me arrepiei com um mau pressentimento). Vi o vídeo meio displicentemente e fui saindo de fininho, mudando logo de assunto.

À noite, porém, minha mãe deslizou pela porta do meu quarto, com uma delicadeza bem diferente do seu costume. Ficou elogiando meu cabelo, minha pele, meus olhos… meu instinto arrepiante sussurrou algo em meu ouvido: Fuja, que é cilada!

— Que exagero, mãe! Sou igual a todo mundo, nem melhor nem pior.

— Mas Polly, querida! Que mania de se desvalorizar… você é linda! Tem porte, elegância.

E desferiu languidamente o bote:

— Aposto que colocaria no chinelo qualquer concorrente à Garota Fashion Teen

Pronto. Eu sabia.

Fui logo dizendo que eu nunca participaria de um negócio daqueles, que essa coisa de porte e elegância era pra patricinha, e eu não era patricinha, ainda não entendeu isso, mãe? 

Ela não se deu por vencida, e nos dias seguintes fez marcação cerrada. Em todas as oportunidades que tinha, tentava me mostrar as vantagens que eu teria se participasse do concurso. Dizia que era uma oportunidade única, que eu estava na idade certa, que ganharia um troféu, que iria conhecer um monte de pessoas legais, ficaria famosa e blá blá blá…

Eu juro que não queria, mas ela insistiu tanto que acabei aceitando. Fizemos a inscrição pela internet e daí pra frente foi o caos.

Percebi o perigo quando ela me disse que no dia seguinte começaríamos os preparativos. Expliquei que estava em plena semana de provas e, se o concurso ainda demoraria uns seis meses, pra que nos preocuparmos com isso naquele momento? Ela inclinou a cabeça para o lado, gesto recorrente quando queria impor uma opinião, e mandou esta:

— Querida, amanhã vamos a uma escola de modelos e etiqueta social…

Gelei.

E no dia seguinte, é claro, estávamos lá. Fomos recebidas por Dona Antônia, uma senhora muito fina, muito discreta, muito calma… o avesso de uma certa pessoa. Combinamos prazos, horários e voltamos pra casa. Minha mãe, radiante e eu, em choque.

Para minha surpresa, as horas que passei naquela escola foram até legais. Havia várias professoras e as aulas eram de etiqueta social, postura, vestuário e maquiagem. Em algumas ocasiões, era Dona Antônia que apenas se sentava ao meu lado e pedia que eu falasse sobre um assunto qualquer. Aí, ia me corrigindo o tom de voz, o vocabulário, os gestos. Aprendi muito com ela.

Além disso, minha mãe me levou a uma nutricionista, a um dermatologista, a uma esteticista e a uma… cartomante. Sim. Isso mesmo.

Passei por duas seleções prévias e fui escolhida com mais 11 garotas. Fomos fotografadas e entrevistadas pelos organizadores do concurso, que explicaram tudo o que iria acontecer a partir dali. A essa altura, eu já estava curtindo tudo aquilo e acreditando que poderia ganhar o concurso e ficar famosa. Sim, eu podia, por que não?

E chegou o dia. Após devidamente massageada, penteada, maquiada, perfumada, vestida e calçada, eu, com minha mãe e meu pai, rumei para o clube onde aconteceria o evento. Eu me sentia linda e poderosa.

Ouvindo mamãe gritar “Vai, querida! Arrasa!”, me encaminhei destemida, junto das outras meninas, para o backstage, onde os organizadores nos lembravam do que deveríamos fazer, embora já tivéssemos feito vários ensaios.  Dali a pouco, a banda começou a tocar umas músicas meio toscas e ouvimos o apresentador iniciando o concurso. Então, iniciou-se também a catástrofe.

Até ali eu sentia um nervosismo legítimo, pois sabia que iria ser observada e analisada por jurados que não imaginava quem seriam. Porém, quando minhas colegas começaram a ser chamadas e fui ouvindo aplausos, vaias, assovios, apitos e balões estourando… um suor deu o seu ar frio da graça em minha nuca.

Na mesma proporção em que o suor ia escorrendo pelo pescoço, um bolo começou a se formar na boca do estômago. Eu seria a nona a entrar e, de onde estava, ia ouvindo os nomes e vendo as respectivas meninas indo para a porta do palco. Minhas mãos gelaram e o bolo foi subindo para a garganta.

Quando ouvi meu nome, fiquei imóvel. Vi a moça com uma prancheta na mão gesticulando, me chamando, e eu travada. Alguém me puxou pelo braço e eu fui meio cambaleando até a entrada do palco, de onde vislumbrei a plateia. Pensei em voltar e sair correndo, mas resolvi enfrentar o pesadelo e subi o primeiro degrau, subi o segundo e no terceiro meu pé, úmido de suor, escorregou na sandália. Saí catando cavaco, com os braços esticados pra frente, e caí de bruços no chão. Naquele momento, ouvi as palavras de Dona Antônia: “Aconteça o que acontecer, seja altiva e sorria”. Morrendo de dor no pé e na alma, ouvindo gargalhadas e assovios, fui me levantando, ajudada pelo apresentador. E aí aconteceu o pior. Ao levantar o olhar, vi minha mãe subindo no palco, levantando os braços e xingando a plateia. Me apressei em levantar e, de repente, minha mãe se volta pra mim, gritando “Querida!”. Saí do palco correndo e mancando como um pato maluco, com minha mãe atrás tentando me alcançar.

E foi assim, senhoras e senhores, que aquele sonho ruiu, acabou, foi dizimado pelo maior tombo da história. Agora estou aqui, deitada em minha cama, de pé enfaixado, as muletas encostadas na parede. Adeus concurso, prêmio, fama…

Mas, quer saber? Tô nem aí!

Afinal, esse sonho nem era meu, ora.

(Minha mãe entra no quarto: Querida! Não fique tristinha! No ano que vem haverá nova edição do Garota Fashion Teen!)

Confesso que, no fundo, eu estava meio triste de sair dali.

Queria ficar feliz, e chorei. Chorei prometendo a mim mesmo que aquela seria a última vez que choraria, que o cara assustado, medroso, ansioso, ficaria ali, internado e enterrado. Márcio, como sempre, adivinhando meus sentimentos, colocou o braço em torno dos meus ombros e ficou assim até chegarmos à portaria.

Do lado de fora, vi que eles já estavam lá. Pareciam calmos, mas isso seria impossível. Como lidar com um filho que fizera aquilo?

Ela veio de braços abertos, com o sorriso genuíno da mãe que tem o filho de volta, o filho que ela não entendia, mas que amava e defendia com a força dos desesperados.

Antes de me abraçar também, meu pai estendeu a mão para Márcio:

— Obrigado por tudo, doutor.

Esse tudo eram horas e horas me ouvindo, me ouvindo, me ouvindo… Acabei aprendendo a me ouvir também, e a tentar entender. E, entendendo, a tentar me perdoar.

Durante a ida para casa, era visível o esforço dos dois em aparentar normalidade, comentando sobre o tempo, o que haveria no almoço, o último jogo do Palmeiras. Se algum tempo atrás minha revolta ilegível taxaria isso de hipocrisia, naquele momento me parecia nada mais do que zelo e carinho.

Ao chegar, meu pai imitou o gesto de Márcio e abraçou meu ombro, dizendo, para mim e para ele mesmo:

— Vai dar tudo certo, filho!

Entrei em meu quarto e não pude evitar de assistir a um rápido filme em que o protagonista sofria em meio a um cenário de porta, janela e cortinas fechadas. Fui direto para a janela e apressadamente a abri, deixando entrar o sol ainda morno da manhã. Em seguida, tirei um por um todos os pôsteres que haviam me acompanhado ladeira abaixo.

Por fim, sentei-me no chão, encostado na cama, de frente para a porta entreaberta, que começou a se mover lentamente. Olhei para cima, pensando em quem seria, o pai ou a mãe. Mas não eram eles. Num segundo, fui atacado por uma montanha de pelos e patas que me fez rolar pelo chão.

— Calma, amigão! Eu voltei… calma, me deixa respirar!

Era Paco, o labrador que foi meu presente de aniversário de 10 anos. Apertei suas orelhas e encarei seus olhos espertos, vivos, cheios de energia.

— Não se preocupe, amigo. Já me decidi.

Decidi, sim, não chorar mais.

Pelo menos, vou tentar.

— #*@%*…

Era assim, com um palavrão expelido entredentes, que Daniel acordava todos os dias. A impressão geralmente era de que a noite tinha sido curta demais em relação a tantas coisas que fizera no dia anterior. E a perspectiva de um novo dia, atolado de compromissos, não lhe facilitava a vida.

Saiu do quarto empurrado pela obrigação e pela vontade de urinar; quando chegou à porta do banheiro e viu que ela estava fechada, considerou a ideia de voltar para a cama e se esquecer do mundo. Encostou-se na parede, esperou que o pai – Como ele conseguia cantar àquela hora da manhã? – saísse e entrou.

Enquanto tomava banho, foi repassando cada atividade que teria pela frente. Ir pra escola, voltar pra casa, almoçar, voltar pra escola, encontrar com o grupo pra fazer o trabalho de Geografia, ir pra aula de natação, lanchar, voltar pra casa, ir ao dentista pra manutenção do aparelho, voltar pra casa e estudar pra prova de Matemática. Engraçado, parece que tô esquecendo alguma coisa…

O dia abafado fazia as aulas parecerem mais longas, mais chatas, o trânsito mais arrastado, a demora na sala de espera do dentista mais aflitiva.

No final da tarde, no ponto do ônibus, Daniel sentia um cansaço que não era só daquele dia, parecia de muito tempo, de séculos. É isso, o peso dos livros e cadernos, da mesma forma que o incômodo do aparelho nos dentes, o dever de ser um filho bacana e de se sair bem nas provas, tudo isso vinha provavelmente de um ancestral cujas funções extrapolavam o meramente humano.

A chegada do ônibus o fez retornar à realidade, e Daniel entrou torcendo para encontrar um lugar para sentar, tarefa difícil àquela hora. Viu um lugar no último banco, e quando chegou lá, teve uma surpresa.

— Carlão!!! Puxa, cara, há quanto tempo, hein!!!

Colegas de classe no Ensino Fundamental, Carlão havia trocado de escola para cursar o Ensino Médio e, desde então, Daniel perdera o contato com o amigo, a quem admirava pela inteligência e alto astral.

— Tá sumido… ainda tá estudando naquela escola estadual do seu bairro?

— Tô, sim… Inclusive, tô indo pra lá agora!

— Agora? Tá estudando à noite? Dureza, hein?

— É que eu arranjei um trampo durante o dia. Tô trabalhando como menor aprendiz num supermercado.

— Puxa… legal…

E sempre com aquela cara de gente boa, foi descrevendo a principal atribuição que tinha no emprego: colocar as mercadorias nas sacolas dos clientes.

— Tem uma técnica, entende? Não pode misturar material de limpeza com comida, tem que separar os gelados, as garrafas não podem ficar batendo uma na outra… tem que agradecer os clientes, mesmo se for daqueles bem chatos… Ihh, tá chegando meu ponto, vou ter que descer…

Daniel viu o amigo se levantar e dar o sinal para que o ônibus parasse. Sentiu pena, queria saber mais, entender como ele conseguia…

— Mas, Carlão… você não fica cansado demais, não?

Uma nuvenzinha, quase imperceptível, passou pelo rosto do rapaz:

— Olha, às vezes eu acho que tô carregando o mundo nas costas, cara…

E a nuvenzinha foi logo enxotada:

— Mas, né… é o meu mundo!

Em casa, a mãe lembrou a Daniel do aniversário da avó. Droga, eu sabia que estava esquecendo alguma coisa!

— Vê se não fica até tarde na internet… Você precisa descansar, filho! Tá ficando com olheira…

E Daniel, sentindo seu peso ancestral, respondeu:

— Olha, às vezes eu acho que tô carregando o mundo nas costas, mãe… Mas, né… é o meu mundo!

Oiê…

Você viu aquela boba da Ju? Achou que eu não estava sacando o que ela queria. Coitadinha! Queria o número da Fê, mas é claaaro que tava de olho era no irmãozinho, aquele gato do Rô. E eu fingi que não tava sabendo de nada e dei o número. Mas é claro que dei o número errado…. até parece que vou ficar ajudando aquela sonsa a arranjar namorado. E a Lelê? Simplesmente se convidou para meu niver, crente que é minha amiga. Mas é claro que eu vou convidar, e ainda vou falar que é festa à fantasia. Meu Deus, vai todo mundo morrer de rir quando aquela lerda aparecer toda fantasiada. E é claro que ela vai entender quando eu pedir mil desculpas por ter esquecido de avisar que a festa não era mais à fantasia. Não vai querer perder a amizade, tadinha! Mas o melhor mesmo foi a besta da Dani… Assim meio sem querer, sabe?, contei pro Duda que, depois que eles já estavam namorando, ela beijou o Beto. Mas é claro que não expliquei que foi um beijo roubado e que ela ficou com ódio do Beto! Mas… ahnnn… tinha uma coisa que eu queria lhe perguntar… o que é mesmo? Ah, lembrei! E aí, você se encontrou mesmo com o Lipe? Como é que foi? Quero saber tudinho… Hein? Como é que é? Não vai me contar porque eu sou fofoqueira? Fofoqueira? Euuuuuuuuu? Que absurdo! Nunca mais fale comigo, ok?

Droga…

Bato a minha mão fechada em outra mão fechada de um, dois, três colegas. Atravesso a rua sem olhar pros lados e sigo andando, fones no ouvido, mochila de chumbo nas costas. Viro à direita, à esquerda e já estou na minha rua.

Entro na casa vazia, abro a geladeira e bebo litros de água, pego uma fruta e vou direto pro quarto. Com pai e mãe no trabalho, experimento uma certa sensação de liberdade… até pra não almoçar, pra deitar na cama de tênis e tudo, pra ouvir Three days grace estourando meus tímpanos…

Abro os olhos e vejo no teto do quarto um inseto, uma pequena mosca que se move lentamente no branco, um ponto preto no teto branco. O que é um pontinho preto na neve? Uma mosca lerda andando no teto do meu quarto. Rsrsrs. Coisa mais ridícula, por que essa idiota não voa? Ela sabe voar, ela pode voar, a janela está aberta, mas ela insiste em andar a esmo no teto branco.

O celular vibrando no bolso me distrai daquela mosca-lesma: Não se esqueça da sua consulta às quatro!

Ah, meu Deus, que droga! Já estava me esquecendo mesmo, consulta às quatro com psicólogo, teste vocacional.

Já estou de saco cheio da ladainha. Não, pai, não sei qual faculdade quero fazer. Não, mãe, não há nenhuma disciplina que eu goste muuuiiito. Não, não quero ser professor como você, mãe, nem engenheiro como você, pai. Do que eu gosto? De música, posso ser músico? De cinema, posso ser cineasta? De futebol, posso ser jogador? Arrá… nada do que eu gosto serve pra vocês!!!

Acabei cedendo e aceitando fazer o tal teste. No fundo, eu estou meio incomodado mesmo com esse negócio de ter que escolher uma profissão. Tenho 17 anos, terminei o ensino médio e não sei que faculdade fazer. Se pudesse, não faria nenhuma, mas nem sonho em falar isso pra eles. Eles morreriam de desgosto.

A mosca no teto. Mas essa tonta não percebe a janela aberta? Será que vou ter que pegar pela mão e ajudar a encontrar a saída?

A maioria dos meus colegas já sabe que curso que fazer. Ou pelo menos pensa que sabe. Rodrigo quer fazer psicologia, acha que só com o povo doido lá da minha família vou ficar rico! E quando eu disse que psicólogo não pode cuidar de membros da família, ele ficou me olhando com cara de bobo. Breno quer fazer Direito, quer ser um adevogado de causas milionárias! Gente do céu, um sujeito que fala adevogado vai, sim, ser um brilhante profissional…

Mas tem a Dani, que quer fazer Medicina. Ela é fera em tudo, só tira notão, estuda pra caramba e diz que tem esse sonho desde pequenininha. Vai conseguir, claro. E tem o Fabinho, que quer estudar Geologia e depois se especializar em espeleologia, sabe de tudo sobre o assunto, conhece um monte de grutas. O cara já escolheu até a especialização que vai fazer depois do curso de graduação!

Minha amiga mosca parece que acordou, está indo com passadinhas rápidas para o rumo da janela, recua, olha pra lá e pra cá… vai, porcaria, voa! Você não sabe que tem asas? VAAAIIII, DROGA!!!

Aí, menina! Até parece que me obedeceu, a bobinha. Vai chegando vai chegando vai… AÍÍÍÍ…

Puxa vida! Essa mosca lerda me distraiu, agora tenho que me apressar… Pego uns biscoitinhos no pote, um iogurte e vou comendo enquanto me olho no espelho, ainda bem que aquela espinha monstro sumiu. Pego o endereço afixado na geladeira, saio, tranco a porta e vou tentar descobrir o que quero…