O relógio, em deságio, resolve agora,

Repentino, voltar seu arpão

Para remotas eras

Em que eras

Mero eu-eunuco

A perguntar ao Senhor-de-todas-as-respostas:

— Tempo, tempo, tempo,

No entretempo entre a graça e a carcaça

Desta desvida de singelos nãos,

Qual é o tempo da verdadeira vida,

Aquela que se esconde nos desvãos?

Onde ela se expande se infiltra se verte

E se veste de lúcida nudez?

O que se faz para alcançá-la,

Se ela espalha seu alheamento

E se faz de besta e desembesta afora?

Responda, Senhor-de-todas-as-chaves,

Como conseguir dessa ser-vida a devida guarida

E que me guarde em suas leis,

Antes que ela me lance a um inexorável

Seiscentos e sessenta e seis?

Responde o tempo:

— Então é assim?

Perde-se de mim

Me gasta

Me converte em águas passadas

Reduz a folhas viradas o meu passar

Aperta meu passo

E manda tocar o bonde

Quer meu poder de cura

Mas não me deixa esquentar a cadeira

E agora… quer ajuda pra tocar nossa amiga vida?

Aham… você quer a minha volta, né?

Ah! Vai querendo!

Fique aí, quietinho,

No seu canto

Na sua miséria 

Enquanto é tempo…

É sexta-feira e a cidade ferve.

As ruas estão cheias de pessoas que procuram um lugar para se divertir, depois de uma semana de trabalho. De pessoas que se apressam para não perder o ônibus que os levará a outro ônibus que os deixará em alguma rua mal iluminada e esburacada e longe ainda da segurança do lar. De pessoas que, sem lar sem emprego sem nada, vagueiam na esperança da caridade alheia, dos restos deixados nas latas de lixo ou nas mesas que adentram as calçadas.

É sexta-feira e a cidade ferve.

As ruas estão cheias do barulho infernal de buzinas e sirenes e pés que querem a todo custo acelerar a vida, e se misturam ao burburinho das vozes e risos e cantoria dos que estão sentados entre velhos e novos companheiros. Mas há também o cheiro de restos de comida e de bebida, de perfumes e suores, de óleo diesel e de desinfetantes, de doença e de remédio. E há também as luzes de faróis nervosos e de luminosos que informam a passagem do tempo e iluminam o rosto dos que lutam contra essa passagem do tempo. As janelas dos arranha-céus que compõem e mantêm as engrenagens dessa massa de gentes abrigam agora aqueles que vão limpar e preparar mesas empoeiradas e banheiros imundos e corredores e cozinhas para o próximo dia.

É sexta-feira e a cidade ferve.

Agora, olhe aquele prédio ali. Bem no meio da furdunço da cidade. É um prediozinho pequeno, antigo, descascado e cheio de pichações, que por milagre ainda persiste com seus moradores.

Veja que nele há uma ou outra luz em um ou outro apartamento. Vê aquela ali em uma janela do terceiro andar? Não, não é luz do teto, é uma luz que vem de cima de uma mesa. É a única luz desse andar. É uma luz solitária.

Como solitário é quem olha agora para essa luz. Ele usa calça e casaco de moletom cujo capuz esconde quase toda sua cabeça. Seu rosto está iluminado pela luz que vem de seu computador, e suas feições não deixam perceber nenhuma emoção, antes se diria que parece hipnotizado, tamanha sua concentração. Ele está sozinho, mas suas mãos frenéticas traçam desenhos imaginários no teclado e seus ouvidos captam sons de tiros e explosões de bombas, de vozes e passos apressados. Ele se sente vivo e poderoso, o tempo não existe, a cidade não existe.

A batalha continua por horas, até que ele se cansa, pousa as mãos no teclado. Boceja, suspira e fecha o aplicativo. Desliga o computador e o quarto imediatamente entra em uma penumbra, amainada pela luz de fora. Pega o celular, deixa-o na mesinha de cabeceira e se deita na cama. Sente a cabeça pesada, os olhos ardendo. Dorme rapidamente. Minutos depois, uma criatura fantasmagórica sai da tela do computador e se senta na beira da cama. Estende o braço descarnado sobre sua cabeça e afasta o capuz. Ele está de costas e assim continua. Sente o hálito quente que acompanha a voz suave sussurrando em seu ouvido: “Descansa, amanhã a batalha continua…”.

Acorda assustado, transpirando, o coração disparado. Olha automaticamente para o computador sobre a mesa, que nesse momento lhe parece altivo, como um soberano em seu altar. Vira de costas. É a quarta noite que tem o mesmo pesadelo e sabe que agora o sono vai teimar a chegar.

Lá fora, a cidade começa a se amornar. Porque já é sábado.

A casa onde Sofia morava era grande, muito grande. Lá havia brinquedos, um pouco velhos, mas que a ajudavam a passar as horas, os dias, as semanas, os meses. O quarto onde dormia era muito amplo, a cozinha enorme, com uma grande mesa. Havia também muitas outras crianças com quem brincar, a maioria delas bem pequenas, muitas ainda usando fraldas.

O dia de Sofia começava cedo: às seis e meia o sino tocava, estridente, e todas as crianças tinham rapidinho que levantar, escovar os dentes e ir tomar seu café com pão e manteiga no refeitório. As maiores ajudavam as menores, sempre sob os olhares atentos das freirinhas, muito sérias e apressadas.

Sofia tinha 9 anos e odiava fazer aniversário, pois cada ano que passava era uma chance a menos de realizar seu sonho.

Mas naquela manhã a rotina se quebrou: o sino ainda não havia tocado quando a menina acordou com Irmã Helena puxando-a pelo braço. Ela deveria trocar-se e ir para o refeitório imediatamente. Acostumada a obedecer sem questionar, Sofia em um instante já estava quietinha no velho e puído sofá que ficava de frente para a porta de entrada do orfanato.

A freira superiora chegou com uma sacolinha de plástico nas mãos e, entregando-a a Sofia, disse:

– São suas coisas. Encontramos um lar para você.

O coração de Sofia disparou, a boca secou, as mãos gelaram.

– Mas, olha, não é bem uma família. É uma senhora, jovem ainda, mas viúva, que não teve filhos. Ela custou muito pra conseguir a adoção, queria um mais jovem, mas não conseguiu. Ficou sabendo da sua história. Viu sua foto. Veio aqui e te viu de longe.

O bolo na garganta. Tantas perguntas… Mas a cara fechada da freira não a estimulava a falar.

– Vocês vão ficar uma semana juntas, pra ver se dá certo. Vê se não estraga tudo.

O abraço foi áspero, sem jeito, acompanhado de um “Vá com Deus” sussurrado.

Pela janela da van caindo aos pedaços, Sofia ia olhando os postes, as casas modestas, as luzes começando a se apagar, as poucas pessoas andando ligeiras, de cabeças baixas… A cabeça da menina também se abaixou. Meu Deus, não era assim que eu tinha sonhado! Quem seria essa mulher? Só me quis porque não tinha outra? Um bebê, talvez, era o que ela queria?

Com muito custo, não chorou. Resolveu causar uma boa impressão, mesmo que a esperança de que fosse dar certo teimasse em ficar cada vez mais longe.

E quando a viagem parecia que não ia mais terminar, a van parou em frente a uma casa branca, pequena, com um jardinzinho de rosas de um lado e uma casinha de cachorro do outro lado da porta. Um portão meio torto, um cadeado velho. Então, era assim… Poderia, sim, ser essa a casa: pequena, modesta, de portão torto. O que interessava era a dona da casa.

E aí ela abriu a porta. Um sorriso tão grande que fechava os olhos, fazendo ruguinhas em volta. Os cabelos compridos, anelados, o vestido florido. Gordinha. E branca, muito branca.

Os braços abertos foram ao encontro de Sofia, que se encolheu, desacostumada de carinhos. Mas aqueles braços macios e branquinhos envolveram o corpo moreno e magro da menina. E quando se afastaram um pouco, a face de uma encontrou seu sonho na outra.

Na primeira vez que vi Helena, me encantei.
Na segunda, tive medo.
Na terceira, me conformei.
Helena estava sentada em um banco da pracinha onde eu costumava ficar depois das aulas, perambulando, adiando a volta pra casa. Quando a vi, fiquei de cara. E finalmente entendi o significado de uma palavra que a professora de Literatura havia falado.
Helena era diáfana. E, sim, caro leitor. Para saber de fato como era Helena, você precisa saber o que é diáfana. Eu não vou lhe dizer. Vá ao dicionário.
Fui me aproximando, fingindo que olhava o celular, e me sentei no mesmo banco, mas não muito perto. Nunca tive problemas de conversar com as meninas, mas aquela não era uma menina comum. Fiquei meio sem saber como abordá-la e acabei optando pelo santo assunto do tempo.
— Tá frio, né? Mesmo com esse sol todo!
— Esse sol glorioso…
Ela estava de olhos fechados, a cabeça um pouco erguida, parecendo sentir um grande prazer em receber a luz do sol glorioso.
— Você já tinha vindo aqui antes? Eu nunca te…
— Não, nunca!
Preparei para me despedir e levantar, porque parecia que dali não sairia nada mesmo. Mas ela me surpreendeu. Virando-se rapidamente para mim, falou:
— Meu nome é Helena, e o seu?
Acomodou-se de lado, uma perna dobrada sobre o banco. Fiz a mesma coisa e passamos a conversar. Ou melhor, ela me fazia perguntas e eu respondia. Quando vi, tinha lhe contado boa parte da minha vida (que, é preciso dizer, não era grande coisa). Eu precisava ir embora, e disse:
— Eu tô sempre por aqui, a gente poderia se encontrar de novo, você não falou nada sobre você mesma, na verdade falou tão pouco…
Ela me interrompeu com um meio sorriso e propôs:
— Amanhã à noite, por volta das 9 horas, aqui mesmo, tá bom pra você?
Não parei nem um segundo para pensar e responder que sim, estava bom demais. Puxa vida, meu amigo leitor! Eu ia ter um encontro com uma gata linda. Entenda meu entusiasmo.
Antes de continuar, é bom contar que estou inserido em uma família totalmente conectada com o mundo e desconectada entre si. O único momento em que ficamos mais ou menos juntos é de manhã, no café. Mesmo assim, cada um se preocupa com os próprios celulares e mal olhamos um pro outro. Todos, pai, mãe e irmã mais velha, trabalham fora o dia inteiro. À noite, em geral a cena é sempre a mesma: cada um num canto da casa, com seu notebook. Chega ao ponto de mandarmos mensagens uns para os outros, mas raramente alguém toma a iniciativa de falar, de conversar com os outros. Há um lado bom nisso. Ninguém pega no meu pé; se volto mais tarde da escola, se falto a algum compromisso, em geral eles nem ficam sabendo. Você deve estar imaginando se não sinto falta de afeto. Bem, não sei… talvez um dia sinta… por enquanto, vou me virando.
Esse breve parêntese explica por que minha família não sabe, e nunca saberá, absolutamente nada do que iriei contar a partir de agora.
No dia seguinte acordei e tentei agir da maneira mais normal possível, mas acho que exagerei nos sorrisos e gentilezas, pois peguei mais de uma vez minha irmã me encarando com as sobrancelhas levantadas. Para ela notar alguma coisa em mim, é porque eu deveria estar dando manota, mesmo.
Depois da escola, passei pela pracinha e procurei por Helena, mas ela não estava lá. Corri pra casa, esquentei meu almoço e liguei a televisão. Nada de interessante. Fui para o meu quarto e fiquei olhando mensagens no celular. Nada de interessante. Zilhões de notificações no face, no twitter. Nada de interessante. Acabei dormindo.
Quando acordei, já passava das oito. Puxa vida!
Troquei de camisa, coloquei um casaco e saí pela porta da cozinha. Minha mãe, que lavava louças na pia, me perguntou aonde eu estava indo. Dei uma explicação meio tosca sobre um trabalho na casa de um colega e mal ouvi a resposta dela. Saí correndo.
Quando cheguei à pracinha, Helena já estava lá, com um vestido branco, de tecido fino, o rosto de novo levantado, de olhos fechados. Olhei em volta: a praça estava totalmente deserta, o frio intenso havia afastado até os casais que costumavam namorar por ali.
Sentei-me ao lado dela, esfregando as mãos.
— Como você consegue ficar sem um agasalho?
Como no dia anterior, ela me respondeu sem se virar:
— O frio não é um problema para mim.
Atrás de nós havia um poste cuja lâmpada jogava uma luz preguiçosa que era em parte encoberta pelos galhos de uma imensa árvore. Naquele momento o rosto de Helena estava praticamente no escuro, mas então ela se virou e a luz descobriu seu rosto. Ela parecia ainda mais jovem do que no dia anterior, não parecia ter mais que 16 ou 17 anos.
— Ontem você me disse que eu não falei sobre mim. Então vou lhe contar uma história. Está disposto a ouvir?
Fiz que sim com a cabeça. Eu estava totalmente extasiado com seu rosto perfeito. Mas a primeira frase dela me fez prestar mais atenção à história.
— Por minha causa, uma guerra começou.
Ela viu que eu me mexi no banco e sorriu.
— A guerra que eu provoquei não foi entre nações. Foi em uma família.
Helena passou a narrar sobre um rapaz que conhecera na escola. Ambos tinham a mesma idade, gostavam das mesmas músicas, tinham os mesmos amigos, frequentavam os mesmos lugares. O namoro surgiu como algo meio inevitável, empurrado pelo insistente mote “vocês nasceram um para o outro”.
— Até o dia em que conheci o outro.
Os pais do então namorado de Helena a convidaram para uma festa em que comemorariam trinta anos de casamento. A festa rolou sem problemas, mas Helena, já meio cansada de ser apresentada a tantos parentes, resolveu se sentar na varanda. Só depois ela viu que estava acompanhada por um rapaz, bem mais velho que ela, de barbas compridas, camiseta do Nirvana e um braço totalmente tatuado.
— Ele viu que eu olhava para as tatuagens com curiosidade e começou a me explicar. Cada uma tinha uma origem, uma motivação diferente. E através dessas histórias eu fui conhecendo aquele homem, profunda e apaixonadamente.
Resumindo, o que aconteceu depois disso foi que Helena deu um pé no traseiro do primeiro namorado por causa do rapaz tatuado. Aí começou a guerra.
— Eu não sabia. Eles eram irmãos.
O traído foi à forra. Junto com outros amigos, armaram uma emboscada e deram uma surra que levou o outro ao hospital.
Nesse ponto ela parou. Voltou à antiga posição, o rosto voltado para cima, na penumbra. Desta vez, não sorria.
— Mas e agora? Em que pé está a guerra? – perguntei.
— Depois da briga, que já faz alguns meses, deixei de atender os telefonemas e não li as mensagens que eles me mandaram. Uma amiga me disse que um dos dois ainda vai morrer por minha causa.
Ela suspirou fundo.
— Mas, não… tudo vai se resolver. Já tomei uma providência. Agora você precisa ir embora, já está tarde demais.
Olhei meu celular. Droga, passava de uma da manhã.
— Quero me encontrar de novo com você – eu disse. Ela respondeu:
— Amanhã, bem cedo, tenho um compromisso. Estarei em um velório. Você sabe onde fica o cemitério Luz Eterna? Nos encontramos lá. Não chegue depois das dez. Combinado?
Ela então tocou meu rosto e imediatamente senti um frio na espinha. As palavras velório, cemitério, luz eterna e, ainda, a frieza glacial da sua mão me fizeram levantar e ir embora depressa.
No dia seguinte, fingi que ia pra escola, andei alguns quarteirões, peguei um táxi e fui ao cemitério. Vi uma pequena multidão em frente a um dos velórios. Quando cheguei mais perto, li o nome que estava em uma plaquinha na parede do lado de fora, onde colocavam o nome do falecido. Helena Laskaris.
Não sabia o que pensar, nem o que fazer. Comecei a elaborar um significado para tudo aquilo. Será que alguma parente dela havia morrido? Talvez a avó…

Vi um grupo de jovens, alguns chorando, e resolvi me aproximar. Perguntei a um deles quem estava sendo velado ali.
— Helena. Ela era nossa colega de classe, mas tinha saído da escola há alguns meses. A gente ficou sabendo que ela estava deprimida. Mas isso… olha, ninguém imaginou que isso pudesse acontecer.
Perguntei o que tinha acontecido.
— Ela se suicidou. Os pais a encontraram ontem pela manhã, no quarto, com uma caixa de remédios vazia do lado.
Fiquei mais aliviado. Não poderia a ser minha Helena, com quem eu conversara até a madrugada. Seria apenas uma terrível coincidência terem o mesmo nome…
Entrei na sala cheia e olhei as pessoas, à procura daquele rosto lindo e único. E então tomei um susto quando vi um homem de barba comprida e um dos braços todo tatuado. Ele estava em pé ao lado do caixão, o rosto vermelho e coberto de lágrimas.
Com a boca seca e as pernas tremendo, fui andando devagar até o caixão aberto. E vi.
Assim eu vi Helena, pela terceira e última vez: ainda linda e muito mais diáfana.
São esses os fatos.
E você, leitor, que a esta altura franze a testa, acalme-se. Não precisa acreditar, se não quiser.

 Cena 1

Um rapaz com camiseta branca, calça jeans, mochila, tênis, entra em uma livraria e fica andando entre as prateleiras.

Uma moça negra, de cabelos afro e óculos, vestida com um avental no qual se lê o logotipo da loja, dirige-se sorrindo ao rapaz.

— Oi! Posso ajudar?

— Ah… eu tô precisando de comprar um presente pra minha mãe, mas tô em dúvida.

— E você sabe de que tipo de leitura a sua mãe gosta?

— Bem, eu acho que ela gosta de livros mais antigos, essas histórias de amor meio melosas, sabe?

— Hum, entendi. Ela deve gostar de romances clássicos. Vamos ali, vou lhe mostrar vários.

O rapaz segue a moça até os fundos da loja.

— Olha, há vários romances maravilhosos. Deste lado, estão os brasileiros e portugueses. Alencar, Manuel de Macedo, Eça… E daquele lado, os estrangeiros…

A moça olha para o rapaz e percebe sua dificuldade em escolher.

— Posso te sugerir um especial?

O rapaz faz que sim com a cabeça e ela pega um exemplar.

O morro dos ventos uivantes. É um livro maravilhoso, uma história de amor linda.

— Ventos o quê?

A moça sorri e faz um gesto com os braços imitando o vento.

— Uivantes… UUUUUUUUUUUUUU… É um romance meio gótico, dá até um medinho.

O rapaz ri e resolve comprar o livro.

Cena 2

O rapaz está em casa, sentado ao lado da mãe.

— Espero que você goste, mãe.

— Meu bem, eu adorei! Li este livro quando era adolescente, mas quero ler de novo. Como você adivinhou que eu gostaria deste livro?

— Bom, na verdade foi a vendedora que me indicou. Ela me perguntou o que você gosta de ler e aí me mostrou esse.

— Esperta, essa moça.

— Ela disse que é meio gótico, fiquei até com vontade de ler também.

— Olha, eu tenho estado ocupadíssima estes dias preparando o jantar que eu e seu pai vamos oferecer ao novo cônsul americano. Vamos fazer assim: você lê primeiro e depois eu leio. Combinado?

— Combinado.

Cena 3

O rapaz está em pé do outro lado da rua em frente à livraria.

Ao ver a moça sair, sem o avental, com uma bolsa no ombro, ele atravessa a rua e vai ao seu encontro.

— Oi, você não deve se lembrar de mim…

— Claro que lembro. Sua mãe gostou do presente?

— Gostou, sim. Ela já tinha lido quando era jovem e disse que vai gostar muito de reler. E… é… eu também li.

A moça arqueou as sobrancelhas e sorriu.

— É mesmo? E o que achou?

— É legal, mas é tão… tão triste, né? Ninguém é feliz ali.

A moça fica séria.

— É, acho que não. Por que você acha que o amor deles não dá certo? O que impede os dois de ficarem juntos?

O rapaz e a moça vão andando lado a lado pela rua.

Cena 4

A mulher ajeita os cabelos em frente a um enorme espelho oval. O rapaz entra no quarto.

— Oi, mãe! Trouxe minha namorada pra você conhecer.

— Mas agora, filho? Estou cheia de coisas para providenciar.

— Tá, mãe, eu sei… o tal jantar… Mas foi você mesma quem insistiu para eu trazer.

— Sim, mas…

— Não precisa se preocupar, nós marcamos de ir ao cinema. Não vamos ficar aqui mais que cinco minutos, tá?

O rapaz dá um beijo no rosto da mãe e os dois descem as escadas.

A moça se levanta do sofá, meio sem jeito. A mulher abre os braços e cumprimenta a moça com beijos na face. A moça relaxa e sorri.

Cena 5

A mulher entra no quarto do filho. Em cima da cama há uma mala aberta onde o rapaz, apressado, coloca roupas e objetos pessoais.

— Meu filho, escute. Vamos conversar.

— Foi a última vez que você aprontou comigo.

— Mas foi para o seu bem.

— Pra ficar bem eu tenho que ficar é longe daqui.

O pai do rapaz entra no quarto. Fala alto e lentamente, dirigindo-se à mulher.

— Deixa ele em paz. Você passou dos limites.

— Não fiz nada demais.

— Fez. Inventou uma história de roubo e tirou o emprego da moça. Passou dos limites, sim.

— Mas ele é um menino.

— Não. É um homem e vai saber se virar.

Epílogo

Um ano depois.

Um pequeno apartamento, com poucos móveis. É noite.

O rapaz e a moça estão sentados em um sofá. O rapaz cochila e a moça, recostada em seu ombro, assiste à televisão.

A campainha toca. A moça se levanta com cuidado, segurando a barriga de cinco meses de gravidez.

A moça abre a porta.

A mulher e a moça se encaram. A mulher abaixa o olhar e fica por um tempo mirando o ventre da moça. Abre a boca, mas não consegue falar.

A moça sorri, abre os braços e acolhe a mulher, que a abraça, chorando.

Do décimo andar de um edifício, olho pela janela fechada de um apartamento onde estou sozinha. Do contraste entre a solidão da sala e a confusão das pessoas nas ruas vem uma sensação de distanciamento, de que nada do que vejo tem a ver comigo, de que estou numa instância paralela, muito longe daqueles bonequinhos de play mobil desgovernados, cujo mundo não tenho habilidade para habitar.

Olho fascinada a pressa de cada um e a incrível maneira de como, indo a direções diferentes, conseguem não se esbarrar, praticamente nem se encostar. Todos absolutamente decididos a ir a algum lugar que só eles sabem qual é.

Da minha janela, vejo-os quase iguais em tamanho, mas há uma diversidade imensa ditada pela cor das roupas, dos cabelos, dos tons da pele. Refletidos pelo sol, parecem bandeirinhas de uma festa junina sem música e sem dança.

Desencosto minha testa do vidro da janela e percebo, pela marca deixada, que meu rosto transpira, apesar do frio de inverno. Olho para a sala, os móveis, a xícara suja, os livros na estante, tudo tão familiar, tão meu, tão eu.

Pego a mochila, destranco a porta e saio. Vou para a frente do elevador e aperto o botão. E ao fazê-lo, vejo o tremor da mão e minha nuca se esquenta, como se alguém invisível a apertasse. Olho para o indicador dos andares e não sei se torço para que chegue logo e acabe com isso ou para que não chegue nunca. Mas o sinal de que chegou resolve por si a minha indecisão, e eu entro.

Lá dentro já está um homem de terno e gravata, que me olha sem me cumprimentar. Penso que meu boné, minha calça jeans e camiseta, meu casaco enorme e meus fones de ouvido fazem com que o homem, graças a Deus, me ignore. Alguns andares abaixo, porém, entra uma mulher e eu não me livro de um bom-dia ao qual dou uma resposta capenga. Não sei a reação da mulher, não olho para ela.

O elevador para e eu me precipito para fora. Olho à frente e a portaria do prédio parece muito longe, inalcançável. Vou andando devagar e ouço a voz de alguém, também longe, tão longe que não consigo entender as palavras ou reconhecer a voz. Viro o pescoço para ver quem fala e vejo o porteiro, que me olha meio espantado. Volto a olhar para frente e me custa fazer esse movimento, a cabeça pesa uma tonelada. Mas vou em frente e ultrapasso o portão.

Tento dar um passo para fora do portão, sem deixar de segurá-lo;
firmo as pernas, tentando um equilíbrio que não encontro, e arregalo os olhos. Os sons me chegam em bloco, não consigo discerni-los, e as imagens são distorcidas como num filme de terror. As pessoas têm corpos que se retorcem e seus rostos estão fora de foco, são fantasmas deslizando braços e pernas enormes diante de mim. Meu coração dispara, sinto que vou desfalecer e, apavorada, antes mesmo de dar um único passo na rua, entro novamente pelo portão e volto cambaleante até o elevador.

Enxugo com as mangas do casaco o suor que me atrapalha a visão e aperto o botão do elevador. Abro a mochila, tento achar as chaves, aperto o botão, deixo cair a mochila, aperto o botão, pego a mochila e aperto o botão. O elevador chega após uma eternidade e eu entro imediatamente, trombando em pessoas que dele estão saindo. Chego ao meu andar, abro a porta e no minuto seguinte sinto meu coração começar a se acalmar e meu corpo, a esfriar. Sentada numa poltrona, a mochila caída no chão, repito baixinho: não sou um play mobil, não sou um play mobil, não sou um play mobil

E aí, mano?

Pô, veio, tô muito preocupado contigo… Eu tinha pensado que era pena provisória, mas fiquei sabendo que vc caiu de vez. Olha, eu bem que te avisei, vc tava dando mole demais, cara.

Sabe, eu já tava meio cismado há muito tempo, com medo de que alguma coisa podia acontecer contigo. No começo era um pisante novo, óculos de marca, camisa de bacana. E aquela bike? Deve ter sido uma bolada…

Mas o que me fez ficar mais de cara foi quando vc disse aquele negócio de que tava com um esquema armado com uns carinhas aí. Lembra que eu te falei: Veio, isso vai dar ruim… esse povo aí não presta… Mas vc tava na adrenalina, cheio de planos, já pensando em carrão e tudo.

Aqui fora tá batendo uma saudade grande de você. Todo dia eu peço a Deus pra proteger vcs todos que tão aí no sofrimento. Tomara que a liberdade cante logo procê, cara, porque nós aqui tamos lembrando todo dia de você.

Mano, eu tô aqui, pode contar comigo pra o que der e vier. Eu ando meio quebrado, mas vou dar uma nota pra sua mãe comprar umas coisas pra você aí. Quando eu conseguir algum dindin, vou perguntar pra ela o que vc precisa. Aí, se estiver nas condições, vou tá te ajudando, mano, porque vc sempre foi parceiro demais comigo.

Cara, vê se manda umas cartas praqui também, pra nós poder tá desembolando mais. Toda vez que passo na rua da sua casa, olho pra janela do seu quarto e lembro quando eu te chamava pra gente conversar.

Cada dia que passa a saudade aumenta mais, irmão.

Um abraço.

Meu nome é Pollyanna, tenho 16 anos e acabo de sofrer um desastre.

Vamos começar do início.

Eu já não gostava desse nome mesmo antes de minha mãe explicar o porquê da sua escolha. Quando ouvi a tal história, aí sim fiquei com ódio. Como alguém pode gostar de uma personagem tão… tão… besta, meu Deus? E ainda por cima inventou um monte de eles, ípsilon e enes, porque acha bacana. Minha mãe era tão legal que acabei deixando pra lá, fingindo que gosto muito do meu nome, só pra não a deixar chateada.

Durante toda a minha infância, ela escolhia minhas roupas de acordo com o gosto meio doido dela, e o resultado em geral era hilário. As fotos são testemunhas: eram muitos laços, tiaras, babadinhos. No aniversário de dois anos, o tema da festa era a Barbie, mas eu parecia mais o Bozo, tamanha a quantidade de enfeites. No de quatro anos, eu deveria ser a Pequena Sereia e estava a cara da boneca Emília.

Foi por volta dos meus dez ou onze anos que comecei a questionar minha mãe sobre a adequação de certas roupas e acessórios que ela teimava em me impor:

— Top de oncinha, mãe? Melhor não…

— Esmalte com estrelinha? Bem…

— Sandália vermelha com meia-calça preta? Oi?!

E mesmo minha mãe sendo muito legal, eu dava um jeito de não aceitar todas as opiniões dela.

Foi há cerca de um ano que o desastre começou.

Quando cheguei da escola, minha mãe veio me mostrar um vídeo que ela havia visto na internet. Era o anúncio de um concurso que iria escolher a garota  Fashion Teen (confesso que, ao ouvir esse nome, me arrepiei com um mau pressentimento). Vi o vídeo meio displicentemente e fui saindo de fininho, mudando logo de assunto.

À noite, porém, minha mãe deslizou pela porta do meu quarto, com uma delicadeza bem diferente do seu costume. Ficou elogiando meu cabelo, minha pele, meus olhos… meu instinto arrepiante sussurrou algo em meu ouvido: Fuja, que é cilada!

— Que exagero, mãe! Sou igual a todo mundo, nem melhor nem pior.

— Mas Polly, querida! Que mania de se desvalorizar… você é linda! Tem porte, elegância.

E desferiu languidamente o bote:

— Aposto que colocaria no chinelo qualquer concorrente à Garota Fashion Teen

Pronto. Eu sabia.

Fui logo dizendo que eu nunca participaria de um negócio daqueles, que essa coisa de porte e elegância era pra patricinha, e eu não era patricinha, ainda não entendeu isso, mãe? 

Ela não se deu por vencida, e nos dias seguintes fez marcação cerrada. Em todas as oportunidades que tinha, tentava me mostrar as vantagens que eu teria se participasse do concurso. Dizia que era uma oportunidade única, que eu estava na idade certa, que ganharia um troféu, que iria conhecer um monte de pessoas legais, ficaria famosa e blá blá blá…

Eu juro que não queria, mas ela insistiu tanto que acabei aceitando. Fizemos a inscrição pela internet e daí pra frente foi o caos.

Percebi o perigo quando ela me disse que no dia seguinte começaríamos os preparativos. Expliquei que estava em plena semana de provas e, se o concurso ainda demoraria uns seis meses, pra que nos preocuparmos com isso naquele momento? Ela inclinou a cabeça para o lado, gesto recorrente quando queria impor uma opinião, e mandou esta:

— Querida, amanhã vamos a uma escola de modelos e etiqueta social…

Gelei.

E no dia seguinte, é claro, estávamos lá. Fomos recebidas por Dona Antônia, uma senhora muito fina, muito discreta, muito calma… o avesso de uma certa pessoa. Combinamos prazos, horários e voltamos pra casa. Minha mãe, radiante e eu, em choque.

Para minha surpresa, as horas que passei naquela escola foram até legais. Havia várias professoras e as aulas eram de etiqueta social, postura, vestuário e maquiagem. Em algumas ocasiões, era Dona Antônia que apenas se sentava ao meu lado e pedia que eu falasse sobre um assunto qualquer. Aí, ia me corrigindo o tom de voz, o vocabulário, os gestos. Aprendi muito com ela.

Além disso, minha mãe me levou a uma nutricionista, a um dermatologista, a uma esteticista e a uma… cartomante. Sim. Isso mesmo.

Passei por duas seleções prévias e fui escolhida com mais 11 garotas. Fomos fotografadas e entrevistadas pelos organizadores do concurso, que explicaram tudo o que iria acontecer a partir dali. A essa altura, eu já estava curtindo tudo aquilo e acreditando que poderia ganhar o concurso e ficar famosa. Sim, eu podia, por que não?

E chegou o dia. Após devidamente massageada, penteada, maquiada, perfumada, vestida e calçada, eu, com minha mãe e meu pai, rumei para o clube onde aconteceria o evento. Eu me sentia linda e poderosa.

Ouvindo mamãe gritar “Vai, querida! Arrasa!”, me encaminhei destemida, junto das outras meninas, para o backstage, onde os organizadores nos lembravam do que deveríamos fazer, embora já tivéssemos feito vários ensaios.  Dali a pouco, a banda começou a tocar umas músicas meio toscas e ouvimos o apresentador iniciando o concurso. Então, iniciou-se também a catástrofe.

Até ali eu sentia um nervosismo legítimo, pois sabia que iria ser observada e analisada por jurados que não imaginava quem seriam. Porém, quando minhas colegas começaram a ser chamadas e fui ouvindo aplausos, vaias, assovios, apitos e balões estourando… um suor deu o seu ar frio da graça em minha nuca.

Na mesma proporção em que o suor ia escorrendo pelo pescoço, um bolo começou a se formar na boca do estômago. Eu seria a nona a entrar e, de onde estava, ia ouvindo os nomes e vendo as respectivas meninas indo para a porta do palco. Minhas mãos gelaram e o bolo foi subindo para a garganta.

Quando ouvi meu nome, fiquei imóvel. Vi a moça com uma prancheta na mão gesticulando, me chamando, e eu travada. Alguém me puxou pelo braço e eu fui meio cambaleando até a entrada do palco, de onde vislumbrei a plateia. Pensei em voltar e sair correndo, mas resolvi enfrentar o pesadelo e subi o primeiro degrau, subi o segundo e no terceiro meu pé, úmido de suor, escorregou na sandália. Saí catando cavaco, com os braços esticados pra frente, e caí de bruços no chão. Naquele momento, ouvi as palavras de Dona Antônia: “Aconteça o que acontecer, seja altiva e sorria”. Morrendo de dor no pé e na alma, ouvindo gargalhadas e assovios, fui me levantando, ajudada pelo apresentador. E aí aconteceu o pior. Ao levantar o olhar, vi minha mãe subindo no palco, levantando os braços e xingando a plateia. Me apressei em levantar e, de repente, minha mãe se volta pra mim, gritando “Querida!”. Saí do palco correndo e mancando como um pato maluco, com minha mãe atrás tentando me alcançar.

E foi assim, senhoras e senhores, que aquele sonho ruiu, acabou, foi dizimado pelo maior tombo da história. Agora estou aqui, deitada em minha cama, de pé enfaixado, as muletas encostadas na parede. Adeus concurso, prêmio, fama…

Mas, quer saber? Tô nem aí!

Afinal, esse sonho nem era meu, ora.

(Minha mãe entra no quarto: Querida! Não fique tristinha! No ano que vem haverá nova edição do Garota Fashion Teen!)

Confesso que, no fundo, eu estava meio triste de sair dali.

Queria ficar feliz, e chorei. Chorei prometendo a mim mesmo que aquela seria a última vez que choraria, que o cara assustado, medroso, ansioso, ficaria ali, internado e enterrado. Márcio, como sempre, adivinhando meus sentimentos, colocou o braço em torno dos meus ombros e ficou assim até chegarmos à portaria.

Do lado de fora, vi que eles já estavam lá. Pareciam calmos, mas isso seria impossível. Como lidar com um filho que fizera aquilo?

Ela veio de braços abertos, com o sorriso genuíno da mãe que tem o filho de volta, o filho que ela não entendia, mas que amava e defendia com a força dos desesperados.

Antes de me abraçar também, meu pai estendeu a mão para Márcio:

— Obrigado por tudo, doutor.

Esse tudo eram horas e horas me ouvindo, me ouvindo, me ouvindo… Acabei aprendendo a me ouvir também, e a tentar entender. E, entendendo, a tentar me perdoar.

Durante a ida para casa, era visível o esforço dos dois em aparentar normalidade, comentando sobre o tempo, o que haveria no almoço, o último jogo do Palmeiras. Se algum tempo atrás minha revolta ilegível taxaria isso de hipocrisia, naquele momento me parecia nada mais do que zelo e carinho.

Ao chegar, meu pai imitou o gesto de Márcio e abraçou meu ombro, dizendo, para mim e para ele mesmo:

— Vai dar tudo certo, filho!

Entrei em meu quarto e não pude evitar de assistir a um rápido filme em que o protagonista sofria em meio a um cenário de porta, janela e cortinas fechadas. Fui direto para a janela e apressadamente a abri, deixando entrar o sol ainda morno da manhã. Em seguida, tirei um por um todos os pôsteres que haviam me acompanhado ladeira abaixo.

Por fim, sentei-me no chão, encostado na cama, de frente para a porta entreaberta, que começou a se mover lentamente. Olhei para cima, pensando em quem seria, o pai ou a mãe. Mas não eram eles. Num segundo, fui atacado por uma montanha de pelos e patas que me fez rolar pelo chão.

— Calma, amigão! Eu voltei… calma, me deixa respirar!

Era Paco, o labrador que foi meu presente de aniversário de 10 anos. Apertei suas orelhas e encarei seus olhos espertos, vivos, cheios de energia.

— Não se preocupe, amigo. Já me decidi.

Decidi, sim, não chorar mais.

Pelo menos, vou tentar.

— #*@%*…

Era assim, com um palavrão expelido entredentes, que Daniel acordava todos os dias. A impressão geralmente era de que a noite tinha sido curta demais em relação a tantas coisas que fizera no dia anterior. E a perspectiva de um novo dia, atolado de compromissos, não lhe facilitava a vida.

Saiu do quarto empurrado pela obrigação e pela vontade de urinar; quando chegou à porta do banheiro e viu que ela estava fechada, considerou a ideia de voltar para a cama e se esquecer do mundo. Encostou-se na parede, esperou que o pai – Como ele conseguia cantar àquela hora da manhã? – saísse e entrou.

Enquanto tomava banho, foi repassando cada atividade que teria pela frente. Ir pra escola, voltar pra casa, almoçar, voltar pra escola, encontrar com o grupo pra fazer o trabalho de Geografia, ir pra aula de natação, lanchar, voltar pra casa, ir ao dentista pra manutenção do aparelho, voltar pra casa e estudar pra prova de Matemática. Engraçado, parece que tô esquecendo alguma coisa…

O dia abafado fazia as aulas parecerem mais longas, mais chatas, o trânsito mais arrastado, a demora na sala de espera do dentista mais aflitiva.

No final da tarde, no ponto do ônibus, Daniel sentia um cansaço que não era só daquele dia, parecia de muito tempo, de séculos. É isso, o peso dos livros e cadernos, da mesma forma que o incômodo do aparelho nos dentes, o dever de ser um filho bacana e de se sair bem nas provas, tudo isso vinha provavelmente de um ancestral cujas funções extrapolavam o meramente humano.

A chegada do ônibus o fez retornar à realidade, e Daniel entrou torcendo para encontrar um lugar para sentar, tarefa difícil àquela hora. Viu um lugar no último banco, e quando chegou lá, teve uma surpresa.

— Carlão!!! Puxa, cara, há quanto tempo, hein!!!

Colegas de classe no Ensino Fundamental, Carlão havia trocado de escola para cursar o Ensino Médio e, desde então, Daniel perdera o contato com o amigo, a quem admirava pela inteligência e alto astral.

— Tá sumido… ainda tá estudando naquela escola estadual do seu bairro?

— Tô, sim… Inclusive, tô indo pra lá agora!

— Agora? Tá estudando à noite? Dureza, hein?

— É que eu arranjei um trampo durante o dia. Tô trabalhando como menor aprendiz num supermercado.

— Puxa… legal…

E sempre com aquela cara de gente boa, foi descrevendo a principal atribuição que tinha no emprego: colocar as mercadorias nas sacolas dos clientes.

— Tem uma técnica, entende? Não pode misturar material de limpeza com comida, tem que separar os gelados, as garrafas não podem ficar batendo uma na outra… tem que agradecer os clientes, mesmo se for daqueles bem chatos… Ihh, tá chegando meu ponto, vou ter que descer…

Daniel viu o amigo se levantar e dar o sinal para que o ônibus parasse. Sentiu pena, queria saber mais, entender como ele conseguia…

— Mas, Carlão… você não fica cansado demais, não?

Uma nuvenzinha, quase imperceptível, passou pelo rosto do rapaz:

— Olha, às vezes eu acho que tô carregando o mundo nas costas, cara…

E a nuvenzinha foi logo enxotada:

— Mas, né… é o meu mundo!

Em casa, a mãe lembrou a Daniel do aniversário da avó. Droga, eu sabia que estava esquecendo alguma coisa!

— Vê se não fica até tarde na internet… Você precisa descansar, filho! Tá ficando com olheira…

E Daniel, sentindo seu peso ancestral, respondeu:

— Olha, às vezes eu acho que tô carregando o mundo nas costas, mãe… Mas, né… é o meu mundo!