O peso de tudo

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Era assim, com um palavrão expelido entredentes, que Daniel acordava todos os dias. A impressão geralmente era de que a noite tinha sido curta demais em relação a tantas coisas que fizera no dia anterior. E a perspectiva de um novo dia, atolado de compromissos, não lhe facilitava a vida.

Saiu do quarto empurrado pela obrigação e pela vontade de urinar; quando chegou à porta do banheiro e viu que ela estava fechada, considerou a ideia de voltar para a cama e se esquecer do mundo. Encostou-se na parede, esperou que o pai – Como ele conseguia cantar àquela hora da manhã? – saísse e entrou.

Enquanto tomava banho, foi repassando cada atividade que teria pela frente. Ir pra escola, voltar pra casa, almoçar, voltar pra escola, encontrar com o grupo pra fazer o trabalho de Geografia, ir pra aula de natação, lanchar, voltar pra casa, ir ao dentista pra manutenção do aparelho, voltar pra casa e estudar pra prova de Matemática. Engraçado, parece que tô esquecendo alguma coisa…

O dia abafado fazia as aulas parecerem mais longas, mais chatas, o trânsito mais arrastado, a demora na sala de espera do dentista mais aflitiva.

No final da tarde, no ponto do ônibus, Daniel sentia um cansaço que não era só daquele dia, parecia de muito tempo, de séculos. É isso, o peso dos livros e cadernos, da mesma forma que o incômodo do aparelho nos dentes, o dever de ser um filho bacana e de se sair bem nas provas, tudo isso vinha provavelmente de um ancestral cujas funções extrapolavam o meramente humano.

A chegada do ônibus o fez retornar à realidade, e Daniel entrou torcendo para encontrar um lugar para sentar, tarefa difícil àquela hora. Viu um lugar no último banco, e quando chegou lá, teve uma surpresa.

— Carlão!!! Puxa, cara, há quanto tempo, hein!!!

Colegas de classe no Ensino Fundamental, Carlão havia trocado de escola para cursar o Ensino Médio e, desde então, Daniel perdera o contato com o amigo, a quem admirava pela inteligência e alto astral.

— Tá sumido… ainda tá estudando naquela escola estadual do seu bairro?

— Tô, sim… Inclusive, tô indo pra lá agora!

— Agora? Tá estudando à noite? Dureza, hein?

— É que eu arranjei um trampo durante o dia. Tô trabalhando como menor aprendiz num supermercado.

— Puxa… legal…

E sempre com aquela cara de gente boa, foi descrevendo a principal atribuição que tinha no emprego: colocar as mercadorias nas sacolas dos clientes.

— Tem uma técnica, entende? Não pode misturar material de limpeza com comida, tem que separar os gelados, as garrafas não podem ficar batendo uma na outra… tem que agradecer os clientes, mesmo se for daqueles bem chatos… Ihh, tá chegando meu ponto, vou ter que descer…

Daniel viu o amigo se levantar e dar o sinal para que o ônibus parasse. Sentiu pena, queria saber mais, entender como ele conseguia…

— Mas, Carlão… você não fica cansado demais, não?

Uma nuvenzinha, quase imperceptível, passou pelo rosto do rapaz:

— Olha, às vezes eu acho que tô carregando o mundo nas costas, cara…

E a nuvenzinha foi logo enxotada:

— Mas, né… é o meu mundo!

Em casa, a mãe lembrou a Daniel do aniversário da avó. Droga, eu sabia que estava esquecendo alguma coisa!

— Vê se não fica até tarde na internet… Você precisa descansar, filho! Tá ficando com olheira…

E Daniel, sentindo seu peso ancestral, respondeu:

— Olha, às vezes eu acho que tô carregando o mundo nas costas, mãe… Mas, né… é o meu mundo!

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